23 dezembro 2017

Conto de Natal

São dez da noite. Vagueio pelas ruas do meu Porto como quem vagueia pelas ruas de qualquer cidade às dez da noite. Sozinho, apenas acompanhado pela minha alma. Juntos andamos pela cidade nesta noite fria de dezembro. A cidade está calma. São poucas as pessoas que estão na rua a esta hora. Apenas existo eu, a minha alma e outras mais almas, solitárias, como a que me acompanha. Troco olhares com essas almas e consigo ver o quão vazias estão. Sorrio. É bom saber que não estou sozinho. Dirijo novamente o olhar para o chão e decido ir para casa.

Abro uma cerveja e sento-me no sofá a ouvir Bach. Há quem goste de ver futebol, depois existo eu que gosta de ouvir Bach, de ler escritores polacos e de fazer scrolling no Instagram. Por falar nisso, há já algumas horas que não passo pelo Instagram. Abro a minha conta e logo me deparo com pessoas vazias mas com almas aparentemente felizes. Começo a fazer o meu tão amado scrolling: a Joana ontem foi a um restaurante asiático com o Miguel, foram comer sushi. A Joana adora sushi (fez questão de o indicar na legenda). O Miguel, que já veio cá a casa umas três vezes, já disse que não gosta de sushi, mas sorriu para a foto (agora os 2415 seguidores da Joana acreditam que ele gosta de sushi); A Luísa disse que o céu hoje esteve maravilhoso e que houve um pôr do sol incrível. O que os seus seguidores não sabem, pelo menos os estrangeiros, é que o dia esteve nublado em todo o país e nem sequer se viu o sol; O João postou uma selfie a sorrir, com a legenda “Merry Christmas :)”. Que lata. Pediu-me dinheiro emprestado há duas semanas, ainda não me pagou e quer que eu tenha um bom natal; e depois a Catarina, aquele ser deliciosamente deslumbrante que raramente publica nas redes sociais e que quando o faz é para mostrar o museu que visitou recentemente ou o livro que está na sua mesa de cabeceira. Bem, neste caso é uma foto da mesa de natal. É quase a mesma coisa.

Conheci a Catarina há pouco mais de um mês num café que fica a quase um quilómetro de onde vivo. Lembro-me de ter ido a esse café porque estava a chover e eu queria tomar um café. Na verdade, a chuva não tem nada a ver com a minha ida a esse café, mas achei que era interessante referir o estado de tempo. Já agora no café tocava uma música de Ludwig Van. Não é Bach, mas é quase a mesma coisa. E foi nesse lugar com uma luminosidade baixa e um ambiente acolhedor que a vi, sentada no sofá do fundo, com as pernas cruzadas, a esquerda por cima da direita, e os olhos postos no Ensaio Sobre a Cegueira. A sua beleza imensa iluminou a minha alma até então apagada e tudo o que em mim estava adormecido acordou. Pedi o meu café. Pensei em sentar-me à beira dela, pensei nas coisas que lhe poderia dizer. Podíamos falar sobre o quão ela é bonita ou sobre o universo. Podia dizer-lhe que gosto de ouvir Bach e de ler escritores polacos. Podia dizer-lhe que vagueio à noite pela cidade com a minha alma solitária a fazer-me companhia. Sentei-me ao balcão. Bebi o meu café enquanto fazia scrolling no Instagram. Olhava para ela de vez em quando. Acabei o café e fui embora. Ela manteve-se sentada, com a perna esquerda por cima da direita e com os olhos postos na obra de Saramago. Voltei ao café no dia seguinte, e no outro, e no outro também. Descobri que se chamava Catarina, que gostava de ler e de ir a museus. Também gostava da chuva e da cor amarela (não me julguem por ouvir as conversas das outras pessoas). Como utilizador das redes sociais, fui logo procurá-la no Instagram e assim que a encontrei comecei a segui-la. Ela seguiu-me de volta dias mais tarde. Mandei-lhe um olá. Ela não respondeu. Dias depois, ela disse-me olá, mas no café, naquele café com baixa luminosidade e com um ambiente acolhedor. Falámos sobre as estrelas, sobre os satélites naturais e sobre o universo. Falámos sobre a razão da nossa existência, que é inexistente, e do quanto nós queríamos que nevasse em Portugal como neva em Nova Iorque. Trocámos o número de telemóvel mas nunca o utilizamos. Vemo-nos sempre no café, as 17h e conversamos sobre tudo e sobre nada.

Hoje é véspera de natal, fiquei a saber que ela ia festejar este dia com os seus pais e o seu irmão mais novo. Ontem foi a última vez que falámos. Nunca lhe falei muito da minha vida, não lhe quis contar que perdi a minha mãe quando tinha 12 anos e que o meu pai foi viver para os Estados Unidos e me deixou com a minha avó. Não lhe quis contar que ia passar o natal sozinho. Na verdade, não estou sozinho. Tenho Bach, cervejas e redes sociais, de que mais preciso? Comprei um presente para mim: umas sapatilhas, estava a precisar de calçado novo. E comprei um presente para ela: um livro. Não de um escritor polaco, não sou assim tão estranho. Não sei quando lho vou dar. Pensei em dar-lho ontem, mas não gosto de dar presentes antes do dia. Talvez daqui a dois dias, no café, às cinco da tarde.

São agora 23h54m. Recebo uma mensagem. É dela. “Espero que estejas a ter um ótimo natal junto daqueles que mais gostas. Ps: Tenho um presente para ti :) Beijinhos, Cat.”. Não sei o que lhe dizer. Senti um misto de emoções ao ler a mensagem. Lembrei-me dos natais da minha infância, da família reunida à mesa, das sobremesas com sabor a canela, de abrir os presentes e da história que a minha mãe me contava quando ia para a cama. Sinto saudades desses tempos. Sinto saudades de viver um natal rodeado das pessoas que amo. Ligo à Catarina e pergunto-lhe onde mora (sim, ainda não sei) e se a posso visitar. Em poucos minutos estou em casa dela.

- Olá.

- Olá.

- Desculpa se estou a incomodar, mas precisava de te dar uma coisa – pego no livro, que está embrulhado, e dou-lho. Ela agradece, vira costas e chega com um embrulho.

- Também disse que tinha uma coisa – sorri. Ela é tão linda. Abro, é um livro. Sorri também.

- Acho que pensámos na mesma coisa – digo.

- Sabes, um dia disseram-me: quando quiseres fazer alguém feliz, oferece um livro.

- Mas então porquê?

- Porque é impossível não estar feliz quando se tem livros para ler.

- Então estás-me a dizer que me queres fazer feliz?

- Mais ou menos isso – ela sorri. Eu sorri.


Ela convida-me a entrar. Lemos juntos o livro que lhe ofereci, comemos bolachas de gengibre e ouvimos músicas de natal. Ainda não fui às redes sociais desde que aqui estou.

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Este conto foi escrito no âmbito de um concurso em que participei. O tema era "Este Natal troque o mundo digital pelo mundo real, troque os telemóveis pelas pessoas: ofereça um livro e fique mais perto de quem lhe toca". Dado que não ganhei, decidi partilhá-lo aqui. Espero que gostem e que tenham um ótimo natal, rodeado daqueles que mais amam. <3

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